A escritora brasileira Maria José Silveira lançou seu primeiro romance, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (Editora Globo), em 2019. O livro lhe rendeu o Prêmio Revelação APCA, foi traduzido nos Estados Unidos, França e Itália e abriu as portas para outras oito obras, incluindo Maria Altamira (Editora Instante), de 2021, finalista do Jabuti e Oceanos, que foi entregue no mês de novembro na caixinha da Amora.
Formada em Comunicação e em Antropologia, com mestrado em Ciências Políticas, Maria José nasceu em Jaraguá (GO), em 1947. Ela também é editora, tradutora e tem vários livros infantis publicados. Passou a infância em Goiânia e mudou-se para Brasília quando o pai foi eleito deputado federal. Foi na UnB que iniciou sua vida profissional, como jornalista. Na USP, fez mestrado em Ciências Políticas. Foi na Universidad de San Marcos, em Lima, que realizou o doutorado em antropologia, nos anos em que viveu no Peru, exilada com o marido, durante a ditadura militar no Brasil. Essa combinação de conhecimentos e vivências formou seu leque de paixões e interesses. Formou também toda a base que permeia sua narrativa: histórias de indivíduos que se movem nos contextos sociais que atravessam as questões mais profundas e as cicatrizes mais abertas do povo brasileiro e latinoamericano.
Maria Altamira é uma preciosidade da literatura brasileira contemporânea. Uma narrativa que entrelaça a vida de duas mulheres, mãe e filha, marcadas por grandes catástrofes. Uma avalanche que soterrou a cidade andina de Yungai, no Peru, e a inundação causada pela construção da usina de Belo Monte, na região do Rio Xingu. Um livro urgente e necessário, que revela feridas abertas e verdades incomôdas.
Nessa entrevista, a autora fala um pouco da sua trajetória na escrita, sobre a pesquisa para construir Maria Altamira, novos projetos e como vê os movimentos que incentivam a literatura feita por mulheres.
Você publicou seu primeiro livro em 2002. Antes disso já atuava no meio editorial, mas foi com 55 anos que lançou um romance. Pode nos contar um pouco de como foi esse caminho?
A verdade é que, hoje, tenho um pouco de dificuldade para entender por que comecei a escrever tão tarde. Desde menina, eu queria ser escritora e cresci sabendo que faria isso algum dia. Mas a vida parece que brincou comigo e me fez adiar esses planos. Quando eu, meu marido e meu filho de três anos voltamos do exílio, pensei em fundar uma editora na ilusão de que isso me facilitaria o caminho para a escrita. Não foi o que aconteceu. Muito porque a Editora Marco Zero, pequena e com recursos financeiros sempre escassos, exigia bastante trabalho. Éramos três sócios - Marcio Souza, Felipe Lindoso e eu - mas era eu a responsável por tocar o dia a dia da editora. Além disso, quis fazer o mestrado, tive minha segunda filha, e militava em um centro cultural na Baixada Fluminense (morávamos no Rio nessa época). Só bem mais tarde, quando a Marco Zero foi “roubada” de nossas mãos (um roubo “legal” mas nem por isso menos roubo perpetrados por “capitalistas selvagens”, sócios novos que supuseram ser capazes de levar a editora à frente, sem nós, os três sócios fundadores), consegui, por fim, começar a fazer o que nunca deixei de querer: escrever.
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Você estudou antropologia e ciências políticas depois de se formar em comunicação social. Toda essa bagagem fica muito evidente no resultado da sua literatura. Pode nos falar sobre como tudo isso se entrelaça nas suas histórias?
Estudei comunicação social na UnB (Universidade de Brasília), e o que de bom tirei daí foi ter trabalhado como jornalista enquanto ainda o cursava. No mestrado de ciências políticas, que fiz na USP, o que valeu foi meu orientador, Juarez Brandão Lopes. Ele me dizia que eu tinha uma facilidade natural para a pesquisa, e me deu total liberdade para fazer uma dissertação que, na verdade, foi de antropologia. Pois foi na antropologia (que estudei na Universidad de San Marcos, em LIma/Peru, e no PPGAS, que então funcionava no Museu Nacional no Rio de Janeiro) e em sua metodologia de trabalho que aprendi tanto a pesquisar como a entender a importância das “histórias de vida” para qualquer tipo de história. Creio que minha escrita está muito ligada a isso, tanto pela “escuta do outro”, pela procura de sua voz e subjetividade, como por alguns temas que, “naturalmente”, como diria o Prof. Juarez, acabaram fazendo parte do meu leque de paixões e interesses.
Você é filha de político, passou boa parte da vida em Brasília, foi exilada durante a ditadura militar. Como essas experiências todas se entrelaçam com a sua trajetória na literatura?
Costumo dizer que ninguém foge de sua vida, muito menos o escritor. Todas as nossas histórias e a paixão que nos leva a elas vêm de tudo que já vivemos, nossas experiências de vida, o que vimos, o que lemos, estudamos, ouvimos, tudo o que nos forma e permanece conosco como lembranças, memórias, interesses, paixões, tudo, enfim, o que nos torna quem nós somos. É dessa estupenda miscelânea toda entrelaçada que vem nosso profundo interesse pelos temas aos quais nos dedicamos por um, dois ou mais anos de nossa vida para escrever nossos livros.
Sua obra aborda muitas questões sociais. Como escrever - e lançar - livros com estas temáticas em uma sociedade tão polarizada?
As questões sociais ou, melhor dizendo, como os indivíduos se movem nesses contextos, é o que me faz debruçar sobre um tema com a paixão necessária para escrever um romance, uma novela, um conto. É o combustível que me move como escritora. Sociedades polarizadas como a nossa, são as que mais necessitam desse olhar, acredito. Tanto é assim que, desde o meu primeiro livro até hoje, não posso me queixar do acolhimento que eles recebem dos leitores. É para eles, leitores, que eu escrevo. São eles que dão vida a um livro. É bom dizer também que, dentro desse princípio unificador da minha literatura, abordo grande diversidade de temas no que escrevo, desde a miscigenação na formação do nosso país (o que tratei no meu primeiro romance, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas), até a fantasia distópica do meu romance mais recente, Aqui. Neste lugar., passando por indígenas, América Latina, formação da geração de 68, ditadura civil-militar, a cidade de São Paulo, amor, sexo, alegrias, sofrimentos, morte, nascimentos, relação pais e filhos, muitas, muitas mulheres, muitos e muitos homens, e etc. etc. etc. A literatura é feita de emoções e sentimentos. É sobre eles que falo.
Como foi a imersão na cultura dos povos indígenas e das comunidades da cidade de Altamira durante o processo de escrita do livro?
A região do Rio Xingu é grandiosa. Seus habitantes são formidáveis por seu amor à natureza e sua capacidade de luta. São diferentes povos indígenas que habitam a região, mas eu estive, sobretudo, com os Yudjá, também conhecidos como Juruna. Quando me dirigi à região, depois de tudo que havia lido sobre a construção da Usina de Belo Monte e a devastação que ela estava provocando na região, eu receava encontrar um povo também devastado, tristíssimo, sofredor. Mas não foi o que encontrei. Encontrei um povo que sofria todo tipo de impactos em sua vida e sua cultura, é verdade, mas cuja característica que mais sobressaía era a luta e a autoestima que a resistência que tudo isso provocava. Um povo extraordinário. Que cultivava sua cultura e sabia de sua força. Voltei muito impactada positivamente por eles e com a confiança de que não se deixarão vencer. Sem esquecer os ribeirinhos que também participam dessas lutas.
Como foi esse processo criativo para unir a construção de Belo Monte, o terremoto no Peru e a luta do MTST e MST? e do Como essas histórias conversam entre si?
Vivi no Peru durante os anos que meu marido e eu passamos no exílio. Sempre que possível, viajávamos pelos Andes e, em uma dessas viagens, sem ter programado, passamos por Yungai, cidade totalmente soterrada por uma avalanche ocorrida poucos anos antes. Evidentemente, jamais pude esquecer a passagem por esse lugar tão trágico. E quando imaginei escrever sobre a Usina de Belo Monte e o que ela estava provocando, me veio a ideia de colocar essas duas catástrofes, diferentes em suas origens, mas semelhantes no que provocavam – uma, coberta pela terra; a outra, coberta pelas águas -, as duas acontecidas e, no caso de Altamira, ainda acontecendo, na América Latina. Já a luta pela moradia em São Paulo veio como consequência das dificuldades que populações inteiras têm continuamente enfrentado em seus lugares de origem. O que acontece não só no Brasil e no Peru, como na América Latina inteira. Aliás, no mundo todo. É assim que essas lutas se entrelaçam.
Embora a narrativa trate de diferentes tragédias: uma que ocorre por causas naturais e outra pela mão do homem, o tema central é a precariedade da condição humana. Sob uma perspectiva histórica, você acha que a sociedade evoluiu ou retrocedeu?
Isso depende do momento histórico que estamos atravessando. Recentemente, aqui no Brasil, vivemos um período de enorme retrocesso. Mas em janeiro, começaremos a caminhar outra vez. Com avanços sempre ameaçados por perigosos retrocessos. Até quando? O futuro nos dará a resposta.
A violência contra a mulher permeia as vidas de Alelí e Maria Altamira. Você acha que a literatura cumpre uma função ao tratar de temas tão sensíveis e urgentes como esse especificamente?
Não gosto de chamar de função, que passa a ideia de algo apenas utilitário, o que não é o caso da literatura. Mas, sim, ela pode e deve tratar desses temas urgentes que a realidade nos impõe porque desperta sensibilidades que poderiam estar adormecidas. E por isso nos torna mais humanos.
Você anunciou recentemente, no seu blog, que está finalizando um novo romance, que se passa no cerrado. Poderia nos contar um pouco mais sobre ele?
Posso contar um pouquinho. O título é Farejador de águas e trata da questão urgente do problema das águas em nossa sociedade. A história se passa no Centro-Oeste e no cerrado cujas árvores baixas, retorcidas e – por que não dizer? – desprezadas são, em grande parte, responsáveis por nossas principais bacias hidrográficas e estão em processo vertiginoso de extinção.
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Você tem o hábito intencional de ler mulheres? O que acha desses movimentos que promovem a leitura de narrativas escritas por autoras?
Gosto muito de ler o que as mulheres escrevem. E acho que esses movimentos que surgiram de um tempo para cá – como o Mulherio das Letras, o Leia Mulheres e clubes de leituras como o de vocês – têm tido um excelente resultado. Estamos vivendo um momento em que o véu da invisibilidade de escritoras femininas está sendo rasgado, o que pode acabar com a ironia que havia até aqui, se considerarmos que o segmento maior de leitores de literatura é composto por mulheres. Ou seja: mulheres que não liam – porque não conheciam - livros de mulheres. Atualmente, os livros escritos por mulheres têm, finalmente!, recebido mais atenção do que antes. Ainda falta muito, e posso estar sendo otimista, mas acredito que esse movimento alentador para nós veio para ficar.
Quais foram os últimos livros escritos por mulheres que você leu?
Rio de Sonhos, de Maria Valéria Rezende, O último sábado de julho amanhece quieto, de Silvana Tavano, Alma de Atriz, de Betty Mindlin e A casa do pai, de Karmele Jaio. Todos maravilhosos.
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