Entrevista com Eliana Alves Cruz

Entrevista com Eliana Alves Cruz

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Blog - Escritoras contemporâneas
- 22/08/2022 15:14:28

Eliana Alves Cruz é uma das escritoras negras brasileiras mais importantes da nossa geração. Sua narrativa, seja em romances históricos ou no recém-lançado Solitária, trata de ancestralidade, racismo e traz para o centro da discussão a tragédia que foi o sequestro de milhares de pessoas, de diferentes partes da África, e a escravidão no Brasil. Trata também do apagamento dessa história e da imensa ferida que ainda está aberta e nos define como sociedade, embora seja sistematicamente varrida para debaixo do tapete. 

Nascida no Rio de Janeiro, em 1966, é também roteirista e jornalista com pós-graduação em Comunicação Empresarial. Trabalhou muitos anos na Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, período em que cobriu 15 campeonatos mundiais, seis jogos pan-americanos e seis Olimpíadas. Estreou na literatura em 2016 com Água de Barrela, uma saga romanceada da trajetória da sua família ao longo de 170 anos. Em seguida lançou O Crime do Cais do Valongo e Nada digo de ti, que em ti não veja, dois romances históricos que trazem para literatura pontos de vista diferentes daqueles que estamos acostumados a ver na literatura quando o assunto é a escravidão no Brasil. Solitária, romance lançado em 2022, narra uma história contemporânea e investiga o legado (e a continuidade) de uma relação com o trabalho baseada no colonialismo e na mentalidade escravocrata. 

Nada digo de ti, que em ti não veja foi o livro escolhido para a caixinha de agosto da Amora. Nessa entrevista, Eliana fala sobre processo de escrita, criação de personagens, resgate de memória, ancestralidade e da importância de conhecermos a nossa história sob diferentes pontos de vista. 

Antes de Solitária, os seus três primeiros romances, incluindo Nada digo de ti, que em ti não veja, são históricos e construídos a partir de toda uma estrutura social que resultou no Brasil de hoje. Como surgiu a vontade de contar essas histórias? 

Surgiu da lacuna que sempre senti na literatura com relação a história negra no Brasil, a trajetória das pessoas, das culturas que aqui estiveram para formar o país. Eu queria ver mais diversidade nas tramas, nos personagens, outros pontos de vista, outras pessoas no centro da cena. Vi que eu possuía uma história familiar rica e comecei por ela. Nesta viagem descobri uma infinidade de coisas que geraram os outros romances.

Muito de Nada digo de ti, que em ti não veja surgiu de pesquisas. Poderia nos contar um pouquinho desse processo de misturar fatos que aconteceram com ficção? 

Não é um processo muito fácil, pois é preciso cuidado para não incorrer em anacronismos severos. A verossimilhança é um recurso que se apoia na reconstrução de cenários à luz das pesquisas já realizadas. Esta é a ciência de fazer as perguntas, suposições e cruzamentos de informações certas. Neste ponto, ser jornalista me ajuda.

A Vitória é uma personagem apaixonante. Conta um pouco pra gente como foi o processo de criação dela? 

Ela nasceu no livro anterior, em O crime do cais do Valongo. Na pesquisa para o personagem Marianno, busquei saber sobre homossexualidade no Brasil colônia e império. Em um artigo achei esta personagem na verdade cem anos antes do período relatado no romance, em Portugal, num depoimento à inquisição. Então, entendi que poderia criar uma travesti histórica, uma mulher com um discurso de transexualidade tão atual apesar de estar num passado tão remoto, pois estas personagens realmente existiram. Não foi fácil. Precisei dosar muito bem cada elemento para não fazer dela uma personagem caricata ou que fosse um joguete na mão de outros ou hipersexualizada. Eu queria o amor para ela e uma ousadia, um atrevimento para além do óbvio.

Sabemos muito pouco, ou quase nada, de homens e mulheres que foram os verdadeiros heróis do Brasil colônia. No livro, você traz como protagonistas personagens que foram invisibilizados, apagados, Como você vê o papel da literatura no resgate da memória e na criação de uma nova narrativa? 

Entendo que é fundamental usar a imaginação para recriar este passado. Há uma produção acadêmica gigantesca no Brasil, que tem informações preciosas e que precisam transpirar para a sociedade para além dos espaços acadêmicos. A literatura é uma destas possibilidades, mais um canal para contar de toda a nossa riqueza, diversidade e também das nossas tragédias passadas que explicam o nosso presente.

Como surgiu a ideia de escolher o "tempo" como narrador do romance? 

Eu queria uma voz que enxergasse tudo nesta perspectiva. Uma voz imortal e que tivesse a autoridade para analisar os acontecimentos com a frieza que o tempo traz. Desde o meu primeiro romance pesquiso lendo jornais muito antigos e lá consigo ver que grandes confusões, polêmicas, desafetos...nada disso faz sentido hoje. Nada ficou e muitas coisas soam até um pouco ridículas. Sem contar que “Tempo” é um orixá de religiões com origem na África do grupo linguístico Bantu, que é a origem da personagem Vitória. Então achei perfeito.

Nada digo de ti, que em ti não veja trata de assuntos absolutamente atuais como fake news, delação premiada, intolerância religiosa, sonegação de impostos, corrupção. Isso sem falar em escravidão (que você trouxe para a contemporaniedade com Solitária). Onde você vê algum avanço e onde vê retrocesso na sociedade brasileira em comparação ao período em que o romance é ambientado? 

Sem dúvida aconteceram avanços. Muita gente morreu e brigou para que hoje eu estivesse aqui, respondendo a estas perguntas por ser uma escritora publicada, uma mulher negra que conseguiu se formar, trabalhar, criar... No entanto, já dizia Karl Marx, que a história se repete como farsa. Desta forma, vejo uma repetição digamos “repaginada” de muitas mazelas. A escravidão moderna é um fato nos campos e nas cidades, o déficit de cidadania para pessoas negras é uma realidade. A violência, o adoecimento mental, o empobrecimento, enfim, questões gravíssimas que acometem prioritariamente a população de homens e mulheres negras estão aí como resquícios dos longos séculos escravocratas do Brasil e ainda demandando muita luta para superá-los.

Você acredita que hoje está se abrindo mais espaço para uma literatura brasileira representativa, que mostre mais claramente as várias vozes que formam a nossa identidade? 

Creio que sim. Finalmente temos um mercado editorial que está conseguindo enxergar tantos talentos invisibilizados por longo tempo e novas escritas também. E isso se dá devido a um novo público leitor que esta literatura traz. Uma oxigenação e ampliação de pessoas que consomem literatura no Brasil.

Você disse, em uma entrevista, que "se reconhecer como uma escritora negra é uma afirmação política". Poderia nos falar mais sobre isso e sobre como você está vendo hoje outras escritoras negras ocupando esse lugar? 

Disse isto porque o Brasil é ainda um país onde muita gente nega este pertencimento quando não lhe traz algum benefício. Muitas pessoas que hoje se assumem negras, renegaram esta condição até meia hora atrás. No entanto, assumir esta posição implica em muitas coisas. É a afirmação de identidade, de uma pele que traz uma história, todo um pertencimento e vivência. Afirmar-se é sempre um ato que escolhe um local na saciedade e isto é posicionamento político. O desafio é não fazer, ou melhor, não deixar que façam do nosso direito em afirmar nossas origens e posições em amarras criativas, em gaiolas que não permitem voos para qualquer área do vasto universo da criação artística.

Quem são as mulheres escritoras que te trouxeram até aqui, que te inspiraram e são referências na sua escrita? 

Uma longa fila. Lembro que a primeira mulher que li foi a poeta Cecília Meireles, aos 11 anos, no famoso livro “Ou isto ou aquilo”. Eu adorava. Depois fui crescendo e vieram Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz... Meu pai assinava um serviço famoso na época, o “Círculo do Livro” e estas autoras vinham e eu ia lendo. Nenhuma escritora negra chegava e isto me afastou desta possibilidade. Eu, assim como muitas como eu, não me enxergava jamais neste lugar. Foram muitos anos até chegar primeiro às norte-americanas Tony Morrison e Alice Walker, e depois a Carolina Maria de Jesus.

Quando você escreve, pensa no público que vai ler as suas obras? Para quem você escreve? 

Depende do livro, da história. O Água de barrela escrevi par todas as pessoas pretas que não fazem a menor ideia de onde vieram por conta da imoralidade, da obscenidade e do crime hediondo que foi o sequestro de pessoas e a escravidão no Brasil. Para quem descende dos privilégios gerados pelo dilaceramento de famílias inteiras e por séculos, também.

O crime do cais do Valongo para quem queria ler sobre uma África diferente dos tantos clichês que já estamos cansados e sobre um Rio de Janeiro também diferente de outros lugares comuns. Um passado importantíssimo que está logo ali e ninguém sabe. O Nada digo de ti, que em ti não veja para os públicos dos outros dois e Solitária prioritariamente para quem descende da realidade do trabalho doméstico no Brasil.

 Mas no final, escrevo para mim. Para saciar uma certa fome de outras contações de histórias, de outras verdades e mentiras também. Outras possibilidades de começos, finais, ângulos... E quem quiser vir comigo nesta viagem é sempre muito bem-vindo.

Você ainda atua como jornalista? Como a profissão ajuda no seu processo de escrita? 

Escrevo em algumas colunas ou textos que me encomendam. Sou hoje muito mais escritora que jornalista, mas a profissão me ajuda muito a ser objetiva, a apurar informações e a fazer perguntas que me levam a pesquisas interessantes e descobertas que enriquecem o texto.

Você acabou de lançar Solitária. Como tem sido a repercussão desse romance? 

Tem sido impressionante. Muitas pessoas lendo e me relatando um Brasil que eu desconfiava que existia. A mídia não dá conta de contar tudo o que acontece na sociedade brasileira, o tanto de passado que ainda temos no nosso presente. O Solitária tem desencavado uma realidade que está na vida de uma parcela enorme da população seja como trabalhadoras domésticas, filhos e filhas delas ou patrões e patroas. Enfim, um universo vasto e assustador.

Algum outro projeto que queira compartilhar com a gente? 

Publiquei dois romances, um livro de contos e um infantil durante a pandemia. Isto sem contar um monte de antologias, textos para publicações e outros trabalhos. Vou agora trabalhar com muita calma para finalizar um livro que pesquiso há muito tempo. Sou roteirista também, então alguns trabalhos vão começar a ir ao ar este ano.

O que você acha de iniciativas como a Amora, focadas em incentivar a leitura de obras escritas por mulheres? 

Iniciativas essenciais e que estão mudando, ampliando e incentivando não apenas a leitura de mulheres, mas o surgimento de novas escritoras para a literatura nacional. O futuro dirá.

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Outras escritoras brasileiras negras para conhecer 

Maria Firmina dos Reis: A primeira romancista negra brasileira conhecida, nasceu em 1825. Publicou Úrsula e foi criadora da primeira escola mista e gratuita do estado do Maranhão. 

Carolina Maria de Jesus: Nasceu em 1917, na favela do Canindé, região norte de São Paulo, trabalhava como catadora e registrava seu cotidiano nas folhas encontradas no lixo. Seu livro  Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada já foi traduzido para catorze línguas.

Ana Maria Gonçalves: Nascida em 1970 em Ibiá, Minas Gerais. É autora de Um defeito de cor, que conta a história de uma menina nascida no Benin e capturada como escrava aos oito anos de idade.  

Conceição Evaristo: Romancista, poetisa e contista, doutora em literatura, nasceu em Belo Horizonte em 1946, é autora de livros como Ponciá Vicêncio e Olhos D'Água. 

Ana Paula Maia: nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. É autora de Enterre seus mortos, entre outros. Como roteirista da TV Globo, foi responsável pela série Desalma.
 

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