Escritoras brasileiras: entrevista com Elizabeth Cardoso

Escritoras brasileiras: entrevista com Elizabeth Cardoso

Postado em:
Blog - Escritoras contemporâneas
- 06/07/2023 13:24:50

Elizabeth Cardoso é uma daquelas escritoras brasileiras que deveriam ganhar um lugar especial em qualquer biblioteca. Não só pela qualidade da sua escrita, mas pela trajetória que vem trilhando como pesquisadora da literatura. Ela é doutora em Teoria Literária pela USP, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária na PUC-SP. Suas pesquisas giram em torno do romance contemporâneo, da literatura infantil e da formação de leitores. Entre seus livros mais recentes, destacam-se: Feminilidade e Transgressão – uma leitura da obra de Lúcio Cardoso (ensaio crítico, de 2013); Todo mundo é misturado (novela infanto-juvenil, de 2016); Tarcirurga, Bartolomeu e Pluminha no mar sem fim (conto infantil ilustrado, de 2017); Literatura e Ensino – territórios em diálogo (organizado junto com Diana Navas e Vera Bastazin, de 2018). 

Depois de tudo tem uma vírgula, enviado na caixinha de julho da Amora, é o seu primeiro romance. Uma obra que reúne muitas histórias dentro da história de Rita de Cássia, uma colecionadora de palavras. Uma catadora de restos: bitucas de cigarro, lixo, cacos de si mesma. Um romance centrado na ditadura militar do Brasil que tem como fio condutor a relação da personagem com Diego, seu irmão, que está às voltas com a publicação de um romance que narra a experiência da família após a prisão de Rita. Como pano de fundo, há ainda a reflexão sobre o que é realidade e ficção, autoficção e romance biográfico. O livro, que ficou em terceiro lugar no Prêmio Machado de Assis 2021, oferecido pela Biblioteca Nacional, foi citado em uma lista, feita pela Regina Dalcastagnè, pesquisadora da Universidade de Brasília, com um dos livros mais pertinentes a respeito do período em que o Brasil viveu sob o regime de autoritarismo militar. 


Assine a Amora e receba, todos os meses, livros das melhores escritoras contemporâneas na sua casa. Clique aqui


Você é professora e pesquisadora de literatura, escreveu ensaios e literatura infantil antes de lançar Depois de tudo tem uma vírgula, seu primeiro romance. Pode nos contar um pouquinho sobre como foi esse processo? 

Escrevo desde sempre. Na infância era uma escrita "imitativa" (em especial Alencar), na juventude era uma escrita selvagem, revolucionária (em especial a poesia), mas tudo muito íntimo, mostrando para poucas pessoas amigas ou gente que eu admirava muito, como Décio Pignatari. Sempre foram todos muito generosos nos comentários, elogios e incentivo para a publicação. Mas eu sempre achei que para escrever e publicar (dois gestos independentes), era preciso estudar muito, conhecer bem a literatura e seus meandros, sua arquitetura realizada e possível. Por isso, só comecei a publicar após os 40 anos, após o doutorado. Os títulos foram ganhando formato em papel de acordo com a história de cada livro. Tarcirurga, eu escrevi em 2005/2006/2008 e publiquei em 2017; Todo mundo é misturado escrevi em 2014/2015 e publiquei em 2016 e Depois de tudo tem uma vírgula escrevi em 2010/2012/2016/2018-2019 e publiquei em 2021. Não tenho pressa, entro e saio da escrita em mergulhos profundos, depois tomo distância e retorno. O tempo é meu melhor leitor. 

No livro fica claro que você é uma apaixonada pelas palavras. Você também é uma colecionadora, como a Rita? Quais são as suas palavras preferidas da Língua portuguesa? 

Onde a língua portuguesa se empretece: dengo, cafuné, malemolência... palavras que descansam minha língua. 

O romance tem como pano de fundo a ditadura militar no Brasil e é isso que conduz toda a história, embora ela trate com bastante ênfase a própria literatura. Você faz questionamentos sobre o que é autoficção e o que é romance biográfico, sobre quem pode narrar a experiência do outro? São muitas camadas. Pode nos contar como foi a construção dessa narrativa? 

Reuni nesse romance muitos anos de pesquisas, leituras e reflexões sobre as dobras que unem e separam a ficção e a história e de como o literário é o lugar de uma escrita que envolve o eu, o outro e o nós. Não importa se é uma escrita de si que abarca o outro para falar de um nós ou a escrita do outro para falar de si e abarcar o nós. Estamos sempre implicados em nossa escrita. Também há reflexões sobre o que é a loucura, sobre o que é sobreviver e o que é resistir. 


Assine a Amora e receba, todos os meses, livros das melhores escritoras contemporâneas na sua casa. Clique aqui


Você mostra uma sobrevivente das mais terríveis torturas não como uma heroína, como muitos tratam do tema. O teu olhar é para as marcas que não desaparecem, a vírgula ao invés do ponto no final. Alguém te inspirou a escrever a Rita? Como ela surgiu na tua vida? 

Rita nasceu da tentativa de dar vida à visão de uma mulher se alimentando da lata de lixo de uma rodoviária no interior de São Paulo. O que ela estaria pensando? Como chegou até ali? Qual a história de vida, para além de estereótipos? Me interessa como as mulheres estão sempre vivendo suas vidas apesar de alguém ou de alguma coisa. E de como as pessoas apressadamente julgam que uma mulher calada, é uma mulher sem ter o que dizer. O silêncio feminino é encobridor de infinitos pensamentos. É esse espaço encoberto que me interessa. Rita é fora de qualquer padrão, porque é autêntica e fiel a si mesma, mesmo quando não sabe o que está fazendo.  


"Me interessa como as mulheres estão sempre vivendo suas vidas apesar de alguém ou de alguma coisa."


A Rita é uma andarilha, uma mulher como muitas que vemos todos os dias em situação de rua, catando lixo, vagando pela cidade. E, também como muitas dessas pessoas, é uma mulher culta, que faz reflexões filosóficas, que chegou ali não pela via da pobreza, mas por um outro tipo de miséria. Como surgiu esse interesse?

Antes de tudo, não quero romantizar o fato grave e desumano de vivermos em um país injusto, desigual e covarde que priva milhões de pessoas das condições mínimas de sobrevivência. Alimentação, saúde, segurança pública, moradia e escola têm que ser para todos e com qualidade. Mas, meu interesse por essa população vem do fato dela ter quebrado com o pacto civilizatório-liberal-capitalista. Disseram “não, não concordo. Tô fora, não é para mim”. Às vezes isso não acontece conscientemente ou como ato político, mas o efeito final é esse. Tem uma rebeldia aí que me encanta. Fora a questão da linguagem, pois com muito tempo de rua é comum desenvolverem delírios linguísticos que a mim ecoam como sons primitivos, de infância, e muito diz de um nós que não conhecemos. 

Você foi citada em uma lista, feita pela Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília, com livros pertinentes ao período em que o Brasil viveu sob a ditadura. Porque escrever sobre isso? A ideia teve a ver com o momento em que vivíamos quando você escreveu o livro? 
 

Nem sabia. Que honra. Sou fã da Regina. Passei muito tempo escrevendo e reescrevendo esse livro. Ao todo foram oito anos. Não que eu trabalhasse nele todos os dias. Neste período, escrevi um doutorado, um pós-doutorado, mais três livros e tive uma filha. Mas é um livro que demorou para ficar pronto. A ditadura é uma das duas cenas da história do Brasil que me perpassa com muita indignação, dor, questionamentos, interesse por como as pessoas reagiram, sentiram aqueles momentos tão intensos de ter a liberdade tolhida, o corpo violentado, a voz (linguagem) calada, e mesmo assim continuar lutando. Pensando no âmbito do sujeito, é uma metáfora de vários momentos da vida de cada um de nós, daí a forte identificação dos leitores e leitoras com a Rita. A outra cena histórica que me atravessa assim é o sequestro e a escravização dos africanos no Brasil. Mas esse é um texto por vir. 
 

"A ditadura é uma das duas cenas da história do Brasil que me perpassa com muita indignação, dor, questionamentos, interesse por como as pessoas reagiram, sentiram aqueles momentos tão intensos de ter a liberdade tolhida, o corpo violentado, a voz (linguagem) calada, e mesmo assim continuar lutando."


Você nos falou que, como o livro não trata, especificamente, da questão racial, as pessoas não te intitulam como uma autora negra. Há uma cobrança para que as escritoras afrodescendentes sempre tratem de temas raciais? Poderia nos falar um pouco sobre isso? 

Não sei exatamente o que eu disse sobre isso para vocês... mas no geral as pessoas me embranquecem porque não esperam que uma mulher de origem periférica e afrodescendente ocupe os lugares que ocupo na academia, na universidade e nas letras. É assim que a branquitude vê o mundo. Mas não é verdade, o povo pardo e preto (os negros) está atuando e produzindo com sucessos em todos os setores. Ainda há muito por conquistar, só estamos na metade do caminho. O 14 de maio às vezes parece eterno. Agora, quanto a ser uma escritora negra ou afrodescendente, passa por essa questão temática também. Do ponto de vista social, esse é mais um desdobramento do racismo que quer delimitar nossa existência, nosso pensar, nossa escrita, determinar um lugar. Eu e qualquer mulher podemos escrever sobre qualquer coisa que nos interesse. Simples assim. Mas vão continuar tentando nos etiquetar. Do ponto de vista crítico, é algo que se está começando a se fazer, que é observar como o afrodescendente escreve, haveria aí um traço, uma perspectiva, uma cadência negra? É nisso que estou pensando hoje, tanto com a literatura infantil de ancestralidade negra, quanto com a literatura de Lima Barreto. 
 

"Eu e qualquer mulher podemos escrever sobre qualquer coisa que nos interesse. Simples assim. Mas vão continuar tentando nos etiquetar."


No livro há também uma grande reflexão sobre a questão de gênero. Enquanto Rita, que nem sabia porque havia sido presa, teve a sua vida completamente destruída, o namorado - preso na mesma época - refez a vida, casou de novo, teve filhos. Essa também foi uma reflexão proposital? 

Foi sim. A questão de gênero perpassa o livro todo, tanto nessa cena que você está citando quanto na relação com o irmão. Rita é uma mulher. Minhas protagonistas são sempre mulheres. Seus destinos, suas perspectivas e histórias, seus saberes, alegrias, dores e afetos me interessam. 

Você pesquisa formação de leitores? Como vê hoje a nossa relação com a leitura? Trocamos os livros pelas redes sociais? 

Não acredito na troca, no “ou”, penso que há um “e”. Lemos livros e posts e jornais e revistas e quadrinhos e livro imagem e aplicativos literários etc. Há espaço para todos. O leitor deve ser livre para escolher. A grande questão é o acesso. Temos que garantir o acesso à literatura. 

Que obras foram transformadoras na tua vida? 

Machado, Guimarães, Clarice, os Poetas Concretos e Caetano Veloso me trouxeram até aqui. Claro que no meio do caminho há muitos atravessamentos, especialmente Shakespeare, Dostoievski e a literatura francesa. 

Você tem o hábito intencional de ler mais mulheres? O que acha desses movimentos que promovem a literatura feita por mulheres? 

Fico muito atenta em ler livros que têm origem em perspectivas diferentes (geográfica, religiosa, gênero, classe, idade, etc). E acho genial esse movimento de ler mulheres, de mulheres escreverem, pois esse é um ponto de vista massacrado desde o papiro. Então há muito a ser dito, ouvido, escrito e lido. 

Quais foram os últimos livros escritos por mulheres que você leu? 

Por motivos profissionais (sou professora de literatura e crítica literária, e minha próxima disciplina é só sobre romance contemporâneo escrito por mulheres), leio um tanto de obras. Do último mês posso citar três títulos que ficaram em minha memória: O lugar, Annie Ernaux; Neighbours, Lília Momplé e Amor avenida, Lilia Guerra. 
 

Assine a Amora e receba, todos os meses, livros das melhores escritoras contemporâneas na sua casa. Clique aqui


LEIA TAMBÉM