Entrevista com Paula Anacaona, autora de Tatu

Entrevista com Paula Anacaona, autora de Tatu

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Blog - Escritoras contemporâneas
- 03/04/2024 07:52:04

Paula Anacaona é uma escritora francesa. Mas poderia ser brasileira. Ela gosta tanto do Brasil que acredita já ter sido brasileira em vidas passadas. Ou que será numa próxima. Seu primeiro romance, Tatu (da editora Nós, enviado na caixinha de março), se passa todinho entre o Rio e São Paulo, e é cheio de referências à nossa cultura, em especial à literatura marginal, aos saraus da periferia. Tudo narrado por uma personagem apaixonante e odiosa, a Victoria. Uma mulher francesa, negra, rica, bem sucedida e muito preconceituosa. Uma anti-heroína, como diz a Djamila Ribeiro na contracapa. O livro, com humor e ironia, faz uma crítica às elites francesa e brasileira, com seus estilos de vida, excessos e hábitos neocolonialistas.

A Paula também é tradutora e dona de uma editora que leva o seu nome. Ou melhor, é ela quem leva o nome da editora. Anacaona foi uma princesa indígena que, aos 18 anos, desafiou Cristóvão Colombo, em 1492, quando ele e a sua tripulação desembarcaram na ilha que hoje é dividida entre o Haiti e a República Dominicana. A Editora Anacaona é especializada em literatura brasileira e publica, na França, desde 2009, autores brasileiros como Djamila Ribeiro, Jarid Arraes, Conceição Evaristo, Maria Valéria Rezende e Marcelino Freire. 

Paula escreveu as biografias juvenis de Jorge Amado e Maria Bonita, tem um livro sobre Solitude, uma mulher escravizada na colônia francesa de Guadalupe na época da Revolução Francesa, acaba de lançar um romance sobre Maria Brandão, uma mulher brasileira engajada nos movimentos feminista e comunista da primeira metade do seculo 20, além da história da guerreira que batiza o seu nome e o da sua editora. Nessa entrevista, Paula nos conta um pouquinho sobre a sua trajetória, relação com o Brasil, processo de escrita de Tatu e outras coisas mais. 
 

O que te inspirou a escrever Tatu

Creio que, como muitas pessoas "minorizadas", mulher e negra, foi um desejo de me ver representada nos livros que eu lia. Sou muito fã dos livros de Conceição Evaristo, que eu traduzi e publiquei na França. Mas – e falo com todo o respeito – seus livros tendem a mostrar só uma imagem da mulher negra: a mulher passando muita dificuldade, muito inferiorizada. Eu sei que isso é a maioria, e insisto: é importante falar delas. Mas... e as outras mulheres negras, as de classe média, e as (ainda) poucas de classe alta? Como elas vivem essas "imagens de controle"? Como diz Patricia Hill Collins: essas imagens que nos aprisionam e acabam por nos controlar. Victoria-Tatu tem a sorte de ter saído da sobrevivência, de ser educada. Mas ela está revoltada. Revoltada porque não poder ser quem ela quer. A história, a sociedade – e vamos falar claro, o racismo sistêmico – sempre lembram que ela deveria ser grata de estar onde está, que ela é uma exceção. E é pesado ser uma exceção!

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Em Tatu, você traz a sua vivência enquanto mulher negra? Essa questão identitária foi (ou é) forte na sua vida? Poderia nos contar um pouco como foi levar isso para a ficção? O quê da Paula tem na Victória? 

Sim, a questão identitária sempre foi muito forte para mim. Sempre senti, de forma inconsciente, o peso do colorismo sobre mim: eu era “diferente” dos outros Negros, eu era mais “educada” – e hoje, graças as minhas leituras, ao movimento negro e antiracista brasileiro, eu sei que todo isso é porque sou mais clara (e que tenho passaporte francês, também!). Sou uma Negra “assimilada”, “branqueada”. De um lado, eu sei que me deu mais oportunidades; do outro, é muito violento, porque tudo era feito para que eu me afastasse da minha ancestralidade negra, da comunidade negra. Na França, também, a pressão para o “branqueamento” das famílias, e das pessoas, é bem forte. Eu quis entrar na cabeça de uma heroína “anti-heroina”, como bem falou Djamila Ribeiro na contracapa. Porque mulheres negras sempre têm que ser heroínas, batalhadoras, fortes, numa abnegação total para salvar a família, a comunidade? Então sei que Victoria, minha protagonista, é egoísta, gordofobica, pobrefobica, vaidosa – e porque não poderia ser? Por acaso, vocês nunca leram livros com uma heroína branca assim? Como diz Djamila Ribeiro (de novo!), “nós, mulheres negras, temos o direito de ser humanas”. Victoria é humana, com seus defeitos (e tem muitos defeitos!). Então, claro, tem um pouco de Tatu em mim, mas vejo mais Victoria como uma colcha de retalhos, juntei as histórias de várias pessoas que eu conheço. Mulheres aparentemente bem-sucedidas, mas no íntimo, tão infelizes... Pessoas negras que odeiam sua cor, sua raça. Lélia Gonzalez, hoje minha referencia feminista negra, falou que até tomar consciencia de sua negritude, era aquela “pretinha legal, que se comporta e se destaca”, dando somente valor à “estetica da brancura”. Mas as semelhanças param aqui: não sou obcecada pelas unhas, não sou gordofobica, não sou control freak, não sou CEO nem milionária e não tenho vontade de ser. 

"Sou uma Negra 'assimilada', 'branqueada'. De um lado, eu sei que me deu mais oportunidades; do outro, é muito violento, porque tudo era feito para que eu me afastasse da minha ancestralidade negra, da comunidade negra"

Eu adoro a brincadeira com os nomes dos esmaltes, de onde veio essa ideia? 

Escrever algumas partes do livro foi muito gostoso, e me diverti bastante com os apelidos das personagens, a descrição das roupas, as críticas mais ou menos veladas à sociedade brasileira... e o nome dos esmaltes, sim! Vou dizer a verdade, é também uma (pequena) crítica às brasileiras, que são totalmente viciadas em manicures! A ideia veio de uma marca famosa aqui, que dá, realmente, nome para seus esmaltes como se fossem jóias ou perfumes! Lembro que eu pensei: “Não sejam ridículos, é só esmalte!” Enfim, decidi ir um pouco além, com esses nomes que revelam o humor do dia da Tatu!

Pode nos falar dos outros livros que escreveu depois de Tatu

Eu mudei de registro. Decidi escrever sobre verdadeiras heroínas. Talvez por isso tive mais sucesso? A Victoria era perturbadora demais. Escrever romances históricos foi como uma resposta às interrogações revoltadas de Victoria: porque não tem mais mulheres na história oficial? E ainda menos mulheres indígenas ou negras? Foi assim que decidi escrever esses romances, para mostrar que existimos na História. Não fomos somente escravizadas passivas ou lascivas, ou indígenas extintas. Foi aí que decidi escrever a história de Anacaona, cujo nome eu adotei – essa mulher me fascina. Depois escrevi a história de Solitude, uma mulher escravizada na colônia francesa de Guadalupe, na época da Revolução Francesa. Por fim, lancei, alguns meses atrás, um romance sobre Maria Brandão, uma mulher brasileira, baiana, engajada nos movimentos feminista e comunista da primeira metade do seculo 20 – e apagada da historia desses dois movimentos. Escrevi também um livro infanto juvenil, uma menina chamada Gaïa. E acho que vou escrever outro, tenho formiguinhas nos dedos!

"Escrever romances históricos foi como uma resposta às interrogações revoltadas de Victoria: porque não tem mais mulheres na história oficial? E ainda menos mulheres indígenas ou negras?"

Na França, há iniciativas como a Amora para incentivar a leitura de mulheres?

Agora tem bastante clubes de leitura de autores afro, já fui convidada para vários, mas é um fenômeno recente. Mas era necessário, as pessoas negras sentiam falta de uma comunidade. Tem também alguns clubes de leitura LGBTQIA+, mas confesso que não os conheço pessoalmente. Mas adoro o conceito da Amora – a caixinha bonita, as surpresas e os brindes, a curadoria exclusivamente feminina... Não conheço nada similar! A ideia é ótima, acho que vocês poderiam importá-la aqui, fariam sucesso!...

Poderia nos indicar autoras mulheres que você leu ou está lendo? 

Agora estou lendo Rachel Carson, Primavera silenciosa. Um livro ecologista, maravilhoso, que descobri graças ao livro de Larissa Bombardi, Agrotóxicos, um colonialismo químico - excelente livro também. Larissa coloca, no começo do seu livro, um trecho de Primavera silenciosa, e cita várias vezes Rachel Carson, então fiquei curiosa…

Rachel Carson é considerada como a mãe do movimento ambiental moderno.É incrível como, já em 1962, ela previa todos os problemas ambientais que temos hoje em dia. Você sabia que esse livro foi eleito no EEUU o livro com mais impacto dos últimos 50 anos? Depois dessa publicação, vários agrotóxicos foram proibidos. Mas ela sofreu tantos ataques, foi deslegitimada tantas vezes… Tão comum com as mulheres, né?

Antes disso, li a biografia de Sueli Carneiro: Continuo preta, a vida de Sueli Carneiro. Eu queria conhecer um pouco mais essa mulher tão importante para o movimento feminista negro brasileiro! 

 

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