Natália Borges Polesso é uma das escritoras mais importantes que temos hoje na literatura brasileira. Não apenas pela qualidade da sua escrita, o que já seria suficiente, ou pelos prêmios que recebeu - foi vencedora do Jabuti e do Açoriano, apenas para citar alguns. Natália amplificou muitas vozes da comunidade LGBTQ+ ao trazer para a literatura um universo vasto e plural de histórias de mulheres que amam mulheres. Suas personagens de diferentes idades, meios, cores e credos vivem diferentes experiências de amor em Amora, livro de 2015 que acaba de ganhar uma nova edição pela editora Dublinense e foi selecionado para a caixinha de outubro da Amora. Com três novos contos, capa e projeto gráfico criados por Luisa Zardo, participação de Conceição Evaristo, Luiz Maurício Azevedo, Milena Britto e Cidinha da Silva, o livro traz também uma belíssima apresentação onde a autora conta sobre o processo criativo e os caminhos que o livro tomou até aqui.
Natalia é pesquisadora, escritora e tradutora. Além de Amora, tem oito livros publicados. Entre eles, Recortes para álbum de fotografia sem gente, Controle, Corpos secos e A extinção das abelhas. Em 2017, foi selecionada para a lista Bogotá39 e, entre 2017 e 2021, foi pesquisadora do Programa Nacional de Pós-Doutorado na Universidade de Caxias do Sul. Seu trabalho tem sido publicado em diversos países, como Argentina, Espanha e Estados Unidos.
Na entrevista a seguir, Natália conta um pouquinho da sua jornada na escrita, fala sobre a nova edição de Amora, projetos, sonhos e literatura feita por mulheres.
“A escrita de Polesso é vivaz e fresca, e ela captura a sombria comédia humana das inúmeras maneiras pelas quais estragamos tudo quando se trata de assuntos do coração. Suas mulheres costumam ter um forte senso de auto-aversão e uma visão secamente dolorosa do mundo. Mas Polesso também pode ser doce, oferecendo janelas para os mundos particulares de amantes de longa data.”
— The Guardian
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Tenho uma história sobre isso. Uma vez, lá em 2008 ou 2009, eu fiz um post no Facebook, perguntando quando alguém podia ser chamada ou se chamar de escritora. Daí, vieram todos os tipos de resposta: é quem está publicada, é quem escreve, é quem tem recepção crítica, quem tem público, é quem acha que é e ponto. Lembro que houve uma discussão bem acalorada, algumas brigas. Na época, eu tinha ganhado um concurso literário na minha cidade, mas continuei sem uma resposta satisfatória. Anos depois, assisti ao filme Flores raras, e teve uma cena que me marcou, quando a Elisabeth Bishop, ao preencher o formulário da imigração, escreve em ocupação: poeta. Quando me casei, em 2017, preenchi o formulário do cartório com escritora, no campo da profissão. Mas olha, levei quase dez anos pensando se esse título me cabia. Em 2017, eu já tinha até ganhado o Jabuti, pelo Amora, é estranho pensar que duvidei tanto de uma palavra, duvidei que me coubesse, que pudesse ser usada assim sozinha. Eu acho importante me apresentar como escritora, tradutora e pesquisadora, acho mesmo e, pelo caminho descobri que essas denominações não são lugares de chegada, estáticos. São buscas permanentes. Sou escritora hoje. Estou em busca de ser escritora sempre, todos os dias. A escrita é meu exercício de vida.
Por que começou a escrever? E por que continua escrevendo?
Comecei cedo. Posso dizer que foi no quinto ano. Escrevia poeminhas, historinhas nas margens dos cadernos, trocadilhos. Mas antes mesmo de escrever, acho que já nutria uma relação com histórias, com contação de histórias. Eu era uma criança muito falante, gostava de fabular e inventar, gostava de criar questões para perseguir respostas. Tipo uma vez que perguntei para a minha madrinha o que aconteceria se eu arremessasse uma estrela de brinquedo, uma estrela de plástico no céu? Ao que ela me respondeu ser impossível. Mas eu disse mas se fosse possível, como uma premissa. Eu acho que tinha uns cinco anos. Não lembro da conversa que se seguiu, mas esse detalhe me marcou, porque a ficção é um grande e se fosse possível. Então, acho que comecei a escrever por interesse genuíno em criar imagens que eu achava interessante ou para responder questões que eu achava instigante e creio que sigo escrevendo pelos mesmíssimos motivos.
Você tem outros livros lindos publicados, mas imagino que o Amora tenha um significado especial. Conta pra gente um pouquinho do que ele representa pra você?
Cada livro que eu escrevo tem algo de especial pra mim por motivos diferentes, por explorações distintas e mesmo pelos caminhos que tomam. O Amora mudou a minha vida. A gente diz que a literatura faz a gente viajar, que nos transporta para lugares inéditos e, sim, é isso! Mas o Amora me fez viajar de verdade! Conheci muitos lugares do Brasil e do mundo, a convite, para falar deste livro. Ainda me impressiona o alcance que ele tem, as coisas que me proporciona. Relatos de muitas pessoas que leem, sobre como se identificam com alguma personagem, pessoas de diferentes lugares, idades, caminhadas de vida, isso é tão bonito. A galera vem falar comigo, agradecer, dizer o quão importante o livro foi. Fico boba. O Amora também me fez criar um projeto de pós-doutorado, que levei por quatro anos (e ainda não acabei), o Geografias lésbicas em literatura, que mapeia livros de pessoas lésbicas, bissexuais cis ou trans. Acho que sou mais conhecida pelo Amora também, é um livro lindo que me trouxe muitas amizades, trabalho, ideias para pesquisa e partilhas muito bonitas sobre a vida.
Como surgiu a ideia de fazer uma nova edição e qual é a tua expectativa com ela?
A ideia não foi minha, devo confessar. Foi da Dubli <3. Quem me contou da ideia foi o Gustavo, meu editor. Eu, obviamente, achei muito massa. Acho que o redesign da capa e do projeto gráfico, feito pela Luisa Zardo ficou muito belíssimo! Temos a participação de pessoas que fizeram parte da história da vida deste livro, como Conceição Evaristo, jurada do Jabuti 2016; Luiz Maurício Azevedo, jurado do prêmio Açorianos; Milena Britto, professora, crítica literária e curadora; Cidinha da Silva, leitora, que já mencionou Amora em um dos seus livros, além de contar com três novos contos e um texto meu, em que falo sobre o processo criativo e a recepção do livro. Então, a minha expectativa é boa hahaha. Espero que as pessoas gostem.
Adorei uma parte da apresentação em você fala que perguntas sobre autobiografia não surgem tão frequentemente para escritores homens brancos cis héteros e deixa claro que Amora é pura ficção. Mas que também é a sua vida, das suas irmãs, amigas, de mulheres lésbicas de todas as idades, das livres, das enrustidas, das impossibilitadas. Como foi escrever um livro que representa tantas mulheres, com vozes e histórias de vida tão diferentes?
Pois é, né? Amora é pura ficção. E tem muito de mim e das pessoas que me rodeiam. Impossível não ser assim. Mas eu não teria como responder essa pergunta! Porque eu não sabia que tanta gente se identificaria! Eu queria escrever um livro com essas personagens, com as mulheres que eu via ao meu redor, com pessoas que eu sentia que precisavam estar nessas histórias, e me esmerei para isso, pra compor vozes diferentes, narradoras diferentes, em tipo e também na composição das personagens! E penso que deu certo!
Você chega a mensurar o impacto que o livro teve na comunidade LGBTQ+?
Olha, como escritora, autora do livro, fica difícil mensurar, fica difícil não ser passional hehehe, mas se for pensar em toda e cada mensagem que recebi, cada fala que escutei, cada relato que ouvi, sobre como o Amora foi algo transformador para essas pessoas, sinto que é um livro bastante importante.
Você fala, também na apresentação, que o Amora tem a cara dos anos 2000. Se fosse descrevê-lo agora, em 2022, que elementos novos traria para o texto?
Eu acho que a gente demora para elaborar as nossas questões e eu escrevo muito com questões, então, acho que em 2010-2014, quando concebia o Amora, eu estava elaborando questões anteriores. Acho que traria mais variedade de personagens, trabalharia o que venho trabalhando nos meus outros livros. Pluralizando as existências, tornando-as complexas.
Pode nos falar um pouquinho sobre os novos contos, eles trazem essa perspectiva do tempo?
Não muito,... eu acho... não sei. São contos que já estavam escritos. Eu quis escolher contos mais parecidos com o Amora, grandes e sumarentos, pequenos e ácidos. São dois contos sobre fins e começos, contos cíclicos. E um bastante poético, imagético. Gosto bastante deles. Inclusive, um deles se passa nos anos 2000 e por isso mesmo o escolhi.
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Em algum momento você pensou que leitoras ou leitores heteronormativos poderiam, através dessa leitura, ter uma amplitude maior no olhar para as relações de amor entre mulheres? Em algum momento houve essa intenção?
Sempre. Eu escrevi pensando no que eu gostaria de ler, escrevi pensando na comunidade LGBTQIA+, mas nunca pensei que não fosse lido por pessoas heterossexuais, heteronormativas. Tem até uma coisa engraçada que acontece e, geralmente, vem de pessoas hétero. Nossa, mas eu não vi amor lésbico, eu vi apenas amor. Não importa quem protagoniza. Daí eu sempre tenho que intervir e dizer que importa sim. Afinal, se a pessoa não vê amor lésbico, mas vê apenas amor, o que isso quer dizer? O que é apenas amor? Nunca apago a sexualidade e a identidade das minhas personagens, são dados a priori, dados importantes na construção da narrativa.
Você tem o hábito intencional de ler mulheres? O que acha desses movimentos que promovem a leitura de narrativas escritas por autoras?
Acho que o Leia Mulheres, desde 2014, e depois todos os clubes que vieram, mudaram o mercado, mudaram os hábitos de leitura. Eu me lembro que, em 2013, eu fui dar uma palestra sobre literatura escrita por mulheres, e levei muitos livros escritos por mulheres para compor o cenário. As pessoas não acreditavam que havia tanto livro escrito por mulheres... e eu nem segmentei. Claro que era uma palestra para público aberto, leigo, mas eram leitores e leitoras. Então, desde lá, vejo que muita coisa mudou! Eu tive uma formação (em Letras) bastante branca, masculina e eurocêntrica, como era a maioria dos cursos nos anos 2000. Quando entrei no mestrado em 2009, entrei para um grupo de crítica feminista. Já saí da faculdade incomodada com essa falta. Então, leio mulheres desde muito e tenho certeza que as pessoas têm lido cada vez mais.
Quais foram os últimos livros escritos por mulheres que você leu?
Eu li a Sylvia Molloy, com o Desarticulações; li O gato perdido, da Mary Gaitskill; reli As meninas, da Lygia Fagundes Telles (pra um trabalho); li A Talentosa família Ribkins, da Ladee Hubbard; li O parque das irmãs magníficas, da Camila Sosa Villada; li Macala, da Luciany Aparecida, li Fome Azul, da Viola di Grado; li Vinco, da Manoela Sawistzki e estou lendo Fotos ruins muito boas, da Moema Vilela
Tem algum novo projeto em andamento? Pode contar pra gente?
Muitos! O Corpos Secos 2; um livro de contos que deve sair no ano que vem; um romance que deve demorar um pouco ainda. Estou meio devagar. Como sou freelancer, tenho aceitado muitos trabalhos para conseguir me manter e bancar o tempo para poder ser a escritora Natalia hehehe.
Qual é o seu sonho com a escrita?
Viver de e para a escrita.
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